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O que há de errado com a "nega maluca"?

O que há de errado com a "nega maluca"? 

  O racismo, assim como outras estruturas e mecanismos de opressões, possui várias facetas, ou seja, singularmente falando, somente “racismo” não existe, “o racismo” muitas vezes limita-se a um termo que possui ramificações em todas as esferas sociais. Os racismos são diversos, e ao longo dos séculos, este sistema encontrou formas de se desenvolver bem a seu modo, de adaptar-se e mascarar-se, possibilitando que as agressões historicamente explicitas, sejam elas verbais ou físicas, tenham dado espaço para uma nova faceta da ridicularização, da exclusão e reforçado estereótipos que a população negra tem tentado com duras penas superar. O racismo recreativo surge então, como um dos racismos. Trata-se da exacerbação e da utilização dos corpos negros para fins de uma representação negativa, permeada por uma falsa comicidade, ou seja, o negro como entretenimento, entretanto, é o negro representado através de um ideal de pessoa negra criado historicamente pelo sistema racista e sempre representado através de um corpo hegemônico, isto é, um corpo não-negro. Vale lembrar que esse ideal de pessoa negra é sempre negativo, estereotipado e, que coloca todos os negros como sendo únicos, sem considerar as especificidades de cada negro enquanto ser humano. 

Como exemplo do racismo recreativo, temos a personagem nega maluca, criada no imaginário popular, que ganhou grande destaque no carnavano país todo, com blocos em que todos os membros se fantasiam deste personagem, como acontece na cidade de Belo Horizonte, nos desfiles das escolas de samba, ou por iniciativas individuais. A personagem nega maluca é a representação exacerbada e totalmente estereotipada da mulher negra: preta, pobre, descabelada, com sua sexualidade explorada, exposta e hipervalorizada, sorridente ao extremo, o que muitas vezes pode representar uma falta de senso crítico diante das mazelas da vida, ou seja, aquela pessoa negra que resiste as dificuldades com um sorriso no rosto e independentemente do que aconteça, nunca para de sorrir. Projetar nas mulheres negras um comportamento passivo, sorridente, que absorve as dificuldades e as mazelas da vida com risos e tolerância, priva até mesmo a liberdade individual de cada mulher, de também ter direito de exigir dignidade e respeito. 

As representações sobre a população negra osuas lacunas, que surgiram no âmbito midiático e popular ao longo dos anos no Brasil, não contribuíram em nada para uma desconstrução dos estereótipos deixados pela escravidão sobre as mulheres negras, na verdade eles reforçaram um imaginário popular já citado, entretanto, quando adentramos o universo das representações midiáticas, os estereótipos já existentes somam-se a outros. A mulher negra, principalmente na televisão, ganhou míseros espaços como empregadas domésticas, escravas do período colonial e, cozinheiras. Em uma esfera contemporânea, ela passa a ser representada como a mulher malandra, que dança, fala alto, é agressiva é hipersexualizada (aquela mulher tida para o sexo casual, mas nunca para um matrimonio) e novamente apresenta pouco senso crítico sobre a própria realidade.  

A questão dessa representação negativa da mulher negra não se localiza apenas nas representações propriamente ditas, como o personagem nega maluca, a raiz do problema se localiza em um setor menos explicito, que talvez no imediatismo do cotidiano passe despercebido. Essas representações falhas, possuem fortes consequências no mercado de trabalho, na autoestima e na representatividade.  

Quando o assunto é “mercado de trabalho x mulheres negras” os estereótipos alimentam uma ideia de servidão, diretamente ligado as empregadas domésticas, que foi e é a categoria de trabalho mais desenvolvida pelas mulheres negras no período pós abolição, visto que anteriormente em uma condição de escravidão, cuidavam dos lares dos senhores e após, sem nenhuma outra perspectiva dado pelo Estado, como políticas públicas, por exemplo, continuaram cuidando dos mesmos lares, porém com uma nova configuração. De modo algum atuar no mercado de trabalho com tal oficio desqualifica e torna indigna a mulher, mas é necessário criar imaginários diferentes, para que outras mulheres negras possam sonhar e criar perspectivas para além de cuidar do lar alheio. Cuidar também de si mesma e ter o direito de ir além.  

Essas representações limitadas são maquinas de dilacerar, destruir e limitar a auto estima de mulheres negras, principalmente crianças e adolescentes, que estão em formação e muito do que são e serão está diretamente ligado as construções no período pré adolescência e jovem adulto. Muitas das meninas negras possuem como único referencial mulheres empregadas domésticas, suas tias, mães e avós, definitivamente uma geração de empregadas, uma geração que se dedicou a cuidar do outro. É de suma importância construir uma rede de outras possibilidades.  

Produzir novas epistemes e desenhar novos horizontes é reconstruir o imaginário que por séculos foi estabelecido. A nega maluca, representa justamente o contrário disso: um desserviço às mulheres negras, uma representação equivocada, desumanizada e, regada de estereótipos negativos que contribui para a persistência do racismo, da hipersexualização dos corpos das mulheres negras e em nada contribui na luta antirracista. 

Também é importante que haja entendimento acerca das maneiras de valorizar os corpos negros na mídia e nas festividades. Que não haja representações de corpos negros como forma de entretenimento, porque constantemente ouve-se que a nega maluca, assim como outras fantasias étnicas, são “homenagens”. As homenagens possuem caráter valorativo e de modo algum fere a dignidade das pessoas, ou seja, necessita-se de uma autorreflexão e de explorar melhor o universo destas homenagens.  

O carnaval é um momento de alegria, descontração e, algumas vezes, interação entre diferentes grupos, as fantasias são pensadas para potencializar a alegria, elas não deveriam servir para ridicularizar as pessoas, elas não devem ser um elemento para reproduzir o racismo e fortalecer estereótipos. A fantasia jamais deve ofender alguém, deve proporcionar alegria para quem se fantasia e para todos aqueles que veem essa fantasia.