O reconhecimento e a inserção de Carolina Maria de Jesus no vestibular da UEM
O RECONHECIMENTO E A INSERÇÃO DE CAROLINA MARIA DE JESUS NO VESTIBULAR DA UEM
Marivânia Conceição Araujo
Rosângela A. Cardoso da Cruz
Nós, pesquisadoras e pesquisadores do Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-Brasileiros – NEIAB, da UEM, vimos a público parabenizar a Comissão do Vestibular Unificado - CVU pela decisão assertiva e bela iniciativa em adotar o livro Quarto de Despejo, da escritora negra Carolina Maria de Jesus[1], na relação das obras selecionadas para o Vestibular dessa Universidade, conferindo, desta forma, merecida honra à citada autora. A saber, NEIAB é composto por professoras/es, alunas/os e membros da comunidade externa que estudam relações raciais e discutem, principalmente, a situação da população negra no Brasil. Com mais de 10 anos de atuação na UEM, percebemos, com pesar, a ausência de autoras e autores negros nos vestibulares, assim como de temas relacionados à história e cultura afro-brasileira nas questões apresentadas nas provas.
Sabemos que o vestibular influencia o que será ministrado nas aulas do Ensino Médio das escolas de Maringá e Região, bem como o que será discutido por professoras/es e alunas/os, nas salas de aula, desse modo, a inclusão de Quarto de Despejo é um importante passo na caminhada em direção a uma educação menos eurocêntrica e mais capaz de perceber a diversidade de culturas, etnias, cores, histórias e tradições que compõem a sociedade brasileira.
Não é segredo que a literatura negra se situa à margem canônica da literatura brasileira e, embora haja muita resistência, escritoras e escritores negros caminham rumo à travessia dessa zona fronteiriça. Esse cenário canônico de exclusão racial é uma das consequências do apagamento da história da população negra no Brasil, como ressalta Regina Dalcastagné[2], a literatura brasileira é um espaço em disputa e vozes marginalizadas (não-brancos, mulheres, homossexuais e pobres), se levantam nesse “território contestado”, bradam por mudança nesse cenário e para a inserção de outras narrativas, com vistas à pluralidade e diversidade. Para a pesquisadora, “São essas vozes, que se encontram nas margens do campo literário, essas vozes cuja legitimidade para produzir literatura é permanentemente posta em questão, que, com a sua presença, nosso entendimento do que é (ou deve ser) o literário”[3].
Cabe destacar, ainda, que, entre as grandes editoras, há uma recusa significativa em se publicar escritos de autoras e autores negros, por conta disso, surgiram editoras dispostas a publicá-los. Esse processo tem pressionado positivamente o mercado editorial, conquistando, desse modo, mais espaço para uma literatura negra.[4] Dentre os exemplos que retratam essa marginalidade, tem-se os livros adotados nas escolas, frequentemente de autoras e autores brancos, cujas temáticas abordam situações e dificuldades que excluem ou usam de estereótipos para tratar a população negra.
Ainda, nessa mesma direção, escritoras e escritores negros são embranquecidos[5] ou tem sua cor omitida. Isso traz sérios problemas para a construção da identidade de estudantes negras e negros que não se veem representados nesses livros, em linhas gerais, em suas personagens ou, até mesmo, têm suas imagens marcadas pela negatividade. O célebre antropólogo Kabenguele Munanga[6] apresenta vários elementos que comprovam a dificuldade em se construir uma identidade negra no Brasil e, a Educação, de forma marcante, corrobora com esse quadro de discriminação.
Não por acaso, os livros adotados nas escolas, frequentemente, são de autoras e autores brancos, cujas temáticas abordam situações e dificuldades que excluem ou usam de estereótipos para tratar a população negra. A chamada “alta literatura”, aquela considerada canônica, invisibiliza e empurra para as margens a literatura oriunda dos grupos sociais minoritários. Dalcastagné destaca a dificuldade encontrada por essas vozes para se firmar num campo dominado por uma elite branca, eurocêntrica e formada por homens. Logo, “a entrada em cena de autores (ou autoras) que destoam desse perfil causa desconforto quase imediato. Pensem no senhor que conserta sua geladeira, no rapaz que corta seu cabelo, na sua empregada doméstica – pessoas que certamente têm muitas histórias para contar”[7]
Destaca-se, nessa mesma direção, que o mito da democracia racial, como ressalta Florestan Fernandes[8], relegou e, ainda, relega a vivência das pessoas negras a lugares pensados, hegemonicamente, seja no âmbito da ficção ou nos palcos da vida real. A partir do suposto fim do regime escravocrata, o Estado brasileiro, de modo estratégico, porém atribuindo ares de naturalidade, continuou a empurrar esses sujeitos para as margens da sociedade, uma vez que, desde épocas pós-coloniais, preteriu-se a vida laboral da população afro-diaspórica em função daquela oriunda dos imigrantes europeus (vale enfatizar que foram usados recursos públicos para esses fins, como nos mostra o sociólogo brasilianista Thomas Skidmore[9]).
Sem a condição mínima de sobrevivência, mulheres, crianças e homens negros foram impelidos para as zonas menos favorecidas (exemplo nítido disso é a favela do Canindé, da obra Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus), para os limiares dos submundos, desumanamente reservados para a gente negra/preta deste país. Assim, uma visão estereotipada da população negra se reproduziu no cenário literário brasileiro, muitas vezes, camuflada sob a falsa pretensão de escrita-denúncia, por meio de livros que fazem parte do cânone, clássicos que são lidos, tanto para entender a história da literatura nacional, quanto para perpetuar e legitimar velhos e cristalizados estigmas.
Negras e negros sempre foram retratados de maneira estigmatizada, figuraram em representações que legitimavam o racismo e, de modo, explícito ou velado, tais estereótipos eram perpetuados pelas tintas de grandes escritores, já canonizados na literatura nacional, como é caso, dentre outros, do livro de contos de Monteiro Lobato, Negrinha.
Por entre as páginas do supracitado livro e no conto homônimo, é possível encontrar a personagem Negrinha completamente bestializada, sem nome, desumanizada e, de maneira acrítica, despida da própria identidade. A menina tem-lhe negado o direito à infância e a ser criança. Estudos apontam essa obra de Lobato[10]como uma denúncia social, no entanto, um olhar mais apurado e crítico vai identificar a manutenção de um suposto status quo, um lugar predestinado a negros, na literatura brasileira. Como podemos observar, a personagem é desqualificada apenas em detrimento da sua cor e condição social e, por todas as linhas lobatianas, não se nota nenhuma empatia pela criança: “Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados. Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos”.
No mesmo livro, dentre outros, encontra-se o conto intitulado Bugio Moqueado, cujo enredo trata da história da morte de um homem negro - daí o apelido Bugio, associando-o ao primata dessa espécie – cortado e moqueado, servido para a esposa do fazendeiro que, supostamente, praticou o crime, sob a acusação de adultério cometido pela mulher e o homem negro. A esposa é, forçadamente, obrigada a comer, a cada dia, um pedaço do corpo do homem, mais uma vez, nenhum tom de humanização ao homem preto, ao contrário, a narrativa retira qualquer possibilidade de pensa-lo como gente, já a partir do título.
Se a escrita de Monteiro Lobato é uma denúncia social, também é uma reafirmação de muitos estereótipos e pensamentos hegemônicos construídos sobre a população negra brasileira. O único momento em que, possivelmente, Negrinha tem a chance de se pensar humanizada, na história, tem-lhe a vida ceifada. A objetificação da menina retira-lhe a possibilidade de ser vista como gente como, comumente, se encontra por entre as linhas canônicas da literatura brasileira, quando não são animalizadas e/ou bestializadas, mulheres, homens e crianças negras figuram como prostitutas, bandidos e delinquentes.
Não se pode fechar os olhos para as muitas formas de racismos velados, camuflados sob as cortinas de supostas denúncias sociais, as quais seguem perpetuando a restrição do povo negro. A referência à Monteiro Lobato justifica-se pelo fato de que o livro Negrinha fez parte da seleção de obras utilizadas nos vestibulares da UEM e segue, igualmente, de maneira acrítica, reproduzido em muitas escolas e Universidades.
Vários dos contos que compõem a obra “Negrinha” trazem em seu bojo um viés segregacionista, recheado por racismo explícito ou, quando velado, disfarçado sob mantos de ironia que se insurgem diretamente contra as vidas negras. Cumpre, a propósito, ressaltar que a substituição da obra “Negrinha”, de Monteiro Lobato, pelo Diário de Carolina de Jesus demonstra a importância que está sendo dada ao cultivo de um olhar plural acerca dos estudos afro-brasileiros, uma vez que a obra substituída se apresenta como alicerce mantenedor de um racismo estrutural e institucionalizado que muito caro tem custado à população negra do Brasil.
A escolha de “Quarto de despejo” se configura num importante meio de atribuir visibilidade e ressaltar a representatividade da literatura de autoria negra no meio acadêmico, engrandecendo e elevando autora e obra a patamares justos nos meios culturais brasileiros. Assim sendo, ressalta-se que a comunidade negra da cidade de Maringá e regiões circunvizinhas, sentir-se-á contemplada e honrada com a escolha representativa de Carolina Maria de Jesus como integrante desse seleto corpo das obras constituintes do concorrido Vestibular da UEM.
Portanto, na qualidade de representante dos estudos que se voltam ao protagonismo e à visibilidade da população negra, o NEIAB tem a grata missão de parabenizar a CVU pela sábia escolha, reiterando a relevância e necessidade da inserção de mais autoras/autores negros na importante lista de Vestibular dessa nobre Instituição e, quiçá, num futuro próximo, a disseminação maciça da Literatura de autoria negra, graças a iniciativas como a presente, se torne realidade.
[1] Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada. Rio de Janeiro, RJ: Ática, 2001.
[2] Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. Vinhedo, Editora Horizonte / Rio de Janeiro, Editora da UERJ, 2012.
[3] Dalcastagné, 2012, pg 12.
[4] A Editora Malê prima pela publicação diversificada de autoria brasileira, africana e da Diáspora, nos gêneros conto, poesia, romance, crônica, ensaio, crítica textual, bem como busca a ampliação da diversidade no mercado editorial brasileiro. https://www.editoramale.com/
Mazza é uma Editora que investe na publicação de autoras/es negras/os e, ainda, de livros que abordam a diversidade da cultura afro-brasileira, a qual, além de amargar a recusa do grande e canônico mercado editorial brasileiro, se configura na arte de representar o segmento das populações excluídas no Brasil. A Mazza editora, há mais de 30 anos, se constitui como referência nacional e internacional, em relação à abordagem das questões sócio-culturais do país, bem como da representação das escritas afrodescendentes brasileiras. http://mazzaedicoes.com.br/editora/
“A Nandyala Editora apresenta-se como um novo conceito no universo livreiro do Brasil, em relação à edição, divulgação e comercialização de obras de autores (as) africanos (as), da diáspora negra e indígenas”. http://libre.org.br/editoras/nandyala/
[5] Como exemplo, temos Machado de Assis, autor mundialmente reconhecido pela qualidade e maestria de seus escritos, que tem sua negritude majoritariamente embranquecida pela literatura brasileira, seja nas representações imagéticas e/ou literárias.
[6] Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
[7]Regina Dalcastagné, 2012, pag. 8.
[8] A Integração do negro na sociedade de classes. São Paulo, SP: Biblioteca Azul, 2008.
[9] Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2012.
[10] Negrinha. São Paulo, SP: Brasiliense, 1963.